quarta-feira, 21 de abril de 2010

"A memória é o único paraíso do qual não podemos ser expulsos" *

*Johann Paul Richter
Ando desmemoriada. Dizem que quando a idade vai chegando é assim mesmo. Mas que idade? Trinta e sete anos?!? Outro dia li uma pesquisa, não me lembro onde, que dizia que o cérebro dá tilte com excessos de informação e se tem algo de que nós, atualmente, temos overdose diária é isso. Informação. Internet, celular, televisão, telefones, rádios, pessoas... ficamos no meio de tudo isso tentando filtrar o que é importante. Fora isso, tenho que ficar atenta aos horários dos remédios do caçula, às datas de vencimentos das contas, aos horários do piano, da dança, do teatro, do inglês e da escola da minha filha, aos prazos de entrega dos originais de provas e aos textos super cabeludos de filosofia. O HD está lotadaço.

Não há o que fazer no meu caso. Boa alimentação, estudar uma outra língua, ler e fazer exercícios físicos regularmente é o que aconselham. Isso tudo eu já faço, levando em conta a minha definição de regularmente: uma vez por mês. E mesmo assim, ando esquecendo, por exemplo, de fechar a porta do carro com a chave. Outro dia lembrei de fechar, mas esqueci a chave pendurada bem na porta. Ontem, levantei-me rápido do computador por lembrar de que tinha algo importante a fazer. Entrei no banheiro, olhei-me no espelho, notei que não havia passado o fio dental, passei o fio dental e voltei pro computador. Minutos depois... pus-me de pé ligeiramente de novo, assustada, ao  certificar-me da mesma coisa que me fez sair da cadeira num passado pouquíssimo remoto e de que não tinha absolutamente nenhuma ligação com passar o diabo do fio dental.

O interessante é que, na contramão, tenho me lembrado de outras coisas assim do nada. Posso estar escrevendo, dirigindo, nas aulas de filosofia, no supermercado e de uma hora para outra...pronto. Pego-me rindo ou chorando sozinha devido a uma breve recordação de algum episódio visto, vivido ou ouvido que vem do além direto para a minha cabeça. Coisas bem nada a ver mesmo, como essas:

- Fafá de Belém cantando o Hino Nacional no Fantástico quando Tancredo Neves que foi eleito presidente morreu antes mesmo de se apresentar aos brasileiros como tal. A cantora que fez jus ao título de intérprete emocionou a todos que ouviram o hino ser cantado como ninguém cantou antes. Por isso foi processada na época, mas não importa. Foi lindo. E eu não me esqueci. Outro dia, fechei os olhos tentando me lembrar do nome do pedreiro que esteve aqui em casa e nesse mesmo instante comecei a ouvir a Fafá. Oooouuuu...viram do Ipiraaaanga as margens plááááááááciiidas. Assim, de repente. Fiquei toda arrepiada, com cara de boba, abri os olhos devagarinho e disse de sopetão em voz alta: Gelson!

- Quando era adolescente fui à Minas passar férias em Itajubá, terra natal de mamãe, com meu namorado (que hoje é meu marido) e alguns amigos. Ficamos na casa da madrinha de minha irmã mais velha, amicíssima de mamãe desde quando eram crianças. Nelson havia saído de bicicleta sozinho. Ficou um tempão fora e voltou pedalando com dificuldade por estar com um braço segurando o guidão e o outro, um quadro enorme. Ficamos curiosos para ver que quadro era aquele. Depois de tanto mistério, ele tirou o papel que protegia a imagem e mostrou pra gente super animado o quadro recém adquirido. E então, gostaram? Lú, nossa amiga, disse que havia adorado, mas fez uma observação: Não sabia, Neca, que você gostava do Sílvio Brito! O quadro, na verdade, era uma pintura super mal feita de John Lennon. Tudo bem que os dois são meio parecidos, mas não importa, o quadro foi vendido e comprado como sendo uma imagem do ex-beatle. A cara do Nelson ao olhar para a da Lú sorrindo para o quadro ... Vira e mexe eu tenho me lembrado dela assim do nada  e caido na gargalhada sozinha. Outro dia foi na fila do supermercado. Um moço até olhou para mim procurando, inutilmente, a graça. Em tempo, o quadro nunca foi pendurado em lugar nenhum.

- O cheiro, exatamente, o cheiro da sala dos meus avós nas tardes de sábado. Mais precisamente quando vovô tocava bandolim e tio Sebastião violão, sentados no sofá (Eles deviam fazer isso de segunda à sexta também, mas eu só os via nos finais de semana). Eles passavam horas tocando. O som era muito agradável, ver os dois tocando e se divertindo era um deleite, mas o aroma sempre presente naquela cena ... Puxa vida, tem me causado dores e produzido lágrimas assim...do nada. Quarta-feira passada, na UERJ, entrei no elevador super bem e foi só apertar o nono que senti o cheiro sem quê nem por quê. Cheguei lá em cima malmalmal de tanta saudade.

- Cenas do filme “A Noviça Rebelde” agora tem me perseguido. “Vejo”, quase todo dia, Julie Andrews ora ensaiando as crianças para cantarem quando o pai  delas chegasse de viagem, ora correndo e girando em torno de si mesma de braços abertos nas montanhas da Áustria, ora ensinando uma música que nos faz perder o medo (seja lá do que for) quando a cantamos ... essas cenas tem vindo à minha mente de uns tempos pra cá quando eu tomo banho. Agora é assim. De vez em quando, eu e The Sounds of Music nos amalgamamos debaixo do chuveiro.

- Glória Pires, no papel de Ana Terra, cavalgando na minissérie "O Tempo e O Vento" exibida na Rede Globo, baseada na obra homônima de Érico Veríssimo. Da história mesmo, lembro-me de pouca coisa, quase nada. Sei que se passava no Rio Grande do Sul e olhe lá. Lembrei-me exatamente da Ana em cima de um cavalo com os cabelos balançando e sendo penteados pelo vento quando entrei na Presidente Vargas outro dia e vi todos os sinais abertos. Verdes para mim. Todos eles! Acelerei o máximo que pude e nesse momento, sabe deus por quê, desliguei o ar, abri os vidros e de repente... eu era a Ana Terra em cima de um cavalo, sorrindo à toa, mas com os cabelos todos nos olhos e na boca.

Vai entender...


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E para quem nunca viu nem ouviu falar...com vocês: Sílvio Brito!



Argh!

17 comentários:

  1. Eu adorei!

    Beijos Nara

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  2. Todos nos temos três comportamentos naturais, isto é "comer", "dormir" e "sexo". Mas precisa cuidar da saúde para exercer esses direitos. Fique sabendo que "sem saúde você não é ningúem", por esta razão bem justa não esqueça de fazer exercício físico pelo menos duas vezes por semana.
    Amem !

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  3. Ok, Anônimo

    Vou tentar aumentar a frequência.

    Obrigada pelo comentário.

    []s

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  4. Nooooossa qual é a verdadeira identidade desse anônimo. E que tipo de comentário foi esse???
    Por que ela não faria exercício??
    O que isso tem a ver com o texto meu Deus?!!!! O quê?!!!

    Do mesmo jeito adorei o texto, mas achei o comentário do anônimo um absurdo.

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  5. Muito bom o texto.

    Esta questão dos cheiros também me remete à tempos passados e fazem um "dowload" na memória, é impressionante, parece que os aromas são um "link" capaz de carregar imagens e emoções.Isto merecia um estudo mais apurado das funções cognitivas.
    bsj e parabéns

    Mazinho

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  6. Mazinho!

    Uma alegria sempre te receber aqui!

    Pois é, esses downloads que estão me impressionando. Tem mais um punhado deles super esquisitos, mas fiquei com medo do texto ficar gigantesco e ser apontada como maluca.

    Bom te ver!

    beijaço

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  7. Elika, há quem diga que a vida-de-verdade é só uma fraçãozinha minúscula do tempo que passamos por aí. A maior parte é só burocracia e encheção de linguiça. Daí, eu acho que algumas pessoas muito especiais, escolhidas a dedo (dedo esse, sei lá de quem) são mais vigilantes, mais despertas (espertas?) e não se conformam com esse troço de gastar tanto e tão precioso tempo, se comportando como os carrinhos bate-bate do parque. Essas pessoas ficam à caça da beleza e dos pequenhos milagres fuçando todos os cantinhos da vida.
    Pois então, nas situações mais desérticas, quando nem esses escolhidos conseguem encontrar alguma coisa digna de nota, resta procurar na própria caixola. E aí, Elika, você certamente encontra...
    Sorte a nossa

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  8. Pois é, Anônimo

    A questão é que se eu tentar lembrar, a coisa me foge da memória como um peixe vivo e todo ensaboado fugiria das minhas mãos. Mas quando estou relaxada, lembro de coisas nada a ver.

    Super estranha a parada...

    Ainda bem que estou na terapia.

    []s

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  9. Professora,
    Eu discordo de que isso é relacionado a idade. Por mais insano que pareça, as vezes me pego fazendo as mesmas coisas. Sabe o que é bom, abrir lá uma vez ou outra - não faça muito para não maltratar o planeta - a geladeira para pensar. Não tenha medo: Seja feliz. O resto é resto.
    Um beijo enorme e pode ter certeza que sua memória está ótima. Por falar nisso, eu que não quero formatar meu HD.
    Fique com Deus.
    João

    PS: Se eu tiver tempo, esse feriado ainda vou colocar no blog mais uma crônica, fotos e uns poeminhas meio sem-graça mas de coração. Fui!

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  10. João! Claro que não está relacionado com a idade???

    Eu sou a prova viva disso!

    :-D

    Beijo enorme

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  11. (risos) Só a senhora professora. Quando vou poder ler uma nova crônica da senhora ? Postei algumas coisas minhas lá, incluindo uma crônica. Espero que a senhora goste porque estou esperando a sua.
    Beijão.

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  12. Muito bom, ekinha... e o cara é realmente parecido com o lenon rsss

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  13. Oi Élika

    Sim, está relacionado à idade o fato de nos lembrarmos com tanta nitidez de fatos passados. E o melhor é que ficarão cada vez mais frequentes estes lampejos. Lembra-se do vovô quando ele contava a mesma história de sua vida tão rica em detalhes?
    O ponto positivaço disto é o fato de você ter uma história tão intensa para se lembrar.
    Também tenho estes curtas metragens em momentos que parecem ser nada a ver.
    Outro dia lembrei-me da pipoca com cacos de vidro, você se lembra?

    Primo Marcos

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  14. Marquinhos,

    Já que a tendência é essa cabe agora o que já só me restava: fazer com que o meu presente seja sempre o meu melhor momento.

    Grande beijo cheio de saudades de vc e de tudo que aprontamos!

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  15. Lyli,

    As aparências enganam...só por fora são parecidos...

    Sílvio Brito? Unpfgh! argh!

    beijos e apareça mais vezes!!!!!

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  16. Pois então, essa tempestade mental, essa aparente falta de memória, já foi objeto de vários escritores. Cada um tem sua maneira. A sua, nos puxa junto para as recordações, de uma música (ah! que mistério), de um avô ou avó e seus cheiros.
    Lembrei da minha, quando no sábado fazia os pastéis só para minha escolha. Depois todos comiam o restante, embrulhado em jornais, para não que não esfriassem.
    E finalmente, a atriz que fez o papel da Ana Terra. Foi uma das histórias que mais gostei de ler do Érico. E de repente, ela estava lá materializada, feito gente de carne, osso e eletricidade. Naquela época foi uma emocionante surpresa, e hoje, uma outra muito melhor, porque compartilhada, tanto tempo depois. E remoçada, como nós não conseguimos fazer com o nosso corpo, fazemos com a lembrança conjunta. Tudo fez sentido, de súbito, de surpresa. Que beleza. Parábens e obrigado. Beijos.

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  17. Eu que agradeço, Djabal.

    Uma honra ser lida e comentada por um grande escritor.

    Grande beijo

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