terça-feira, 17 de maio de 2011

O Elo Perdido


 O corpo de dona Roberta teria que ser exumado. Passados sete anos desde que a mãe de Dulcinha havia sido enterrada, o pai da moça veio a falecer. Por falta de espaço no túmulo da família a exumação foi aconselhada uma vez que Dulcinha queria mesmo os pais juntos mesmo depois de mortos. E disso ela não abriria mão, pois, a lembrança que guardava de seus pais se assemelhava a uma árvore com o seu pai sendo o tronco desse imponente vegetal e a mãe, a copa responsável não só pela fotossíntese como também, e principalmente, pela sombra que dá vontade da gente fazer piquenique. Tronco sem folhas não respira, mas fica em pé, serve para colocar rede. E folhas sem tronco? A gente só varre sem perceber a menor resistência mesmo que seja um punhado. Dulcinha usava essa imagem para se consolar quando a saudade da mãe doía-lhe até os ossos. Imagina se o seu Mauro lhe falta primeiro, como a alegria de dona Roberta se sustentaria? Melhor assim já que tem que ser de um jeito ou de outro. Melhor assim.  Diante, porém, da possibilidade de uni-los novamente, Dulcinha faria o que fosse preciso para que a majestade do arbusto fosse imposta para a eternidade.

O fato de ter ficado órfã de mãe e de pai aos vinte e quatro anos de idade e ter que administrar não só sua vida como também uma casa com quintal trouxe muito sofrimento para Dulcinha. Para sermos sinceros, ela sobreviveria bem, pois não era dada a grandes reflexões. Aconteceu, porém, algo que tirou a jovem do seu eixo.

O coveiro, seu Inácio, era homem honesto e devolveu à Dulcinha uma aliança encontrada não em uma das falanges onde deveriam jazer todos os anéis, mas entre as costelas de dona Roberta se é que ainda podemos chamar o esqueleto pelo nome de quem o carregou. Seu Inácio poderia ter somente entregado o aro dourado para a moça. Se somente isso fizesse diríamos que teria feito uma boa ação, agido corretamente e consolado uma filha devolvendo-lhe algo que a terra quase sorveu. Mas não. Seu Inácio deu com a língua nos poucos dentes que carregava e descreveu com detalhes para a senhorinha o local exato onde encontrou a pequena argola de ouro dezoito. Foi bem mesmo na região onde deveria ser o estômago.

Dulcinha sabia que sua mãe havia morrido durante um assalto. Houve um arrastão no túnel Rebouças e os ladrões subtraiam de suas vítimas bolsas, celulares e as jóias das madames chiques que moram na zona sul da cidade. Dona Roberta, coitada, moradora de Madureira, estava indo visitar o irmão doente internado no hospital da Lagoa. Quando estava bem no meio do túnel, os veículos que estavam na sua frente pararam de repente e ela também freou bruscamente. Viu, em seguida, algumas pessoas correndo com cara de pânico e abandonando seus próprios carros, mulheres gritando sem conseguir sair do lugar e não sabemos mais o que Dona Roberta viu. O corpo dela foi encontrado a poucos metros de seu carro com um tiro alojado na parte de trás da cabeça.

Foi seu Mauro que contou para Dulcinha, que nessa época estava se preparando para o vestibular, o triste acontecido. A morte de Roberta saiu até nos jornais já que ela era professora de história da rede estadual da cidade maravilhosa. Dulcinha chorou, sofreu, quis morrer também, mas sete meses depois já estava matriculada na faculdade de matemática. Mesmo antes de dona Roberta passar por aquele túnel que acabou por ligar a terceira com a quarta dimensão, a menina já queria ser professora como a mãe. O infeliz encontro de um projétil com o crânio da pessoa que mais havia lhe entendido nessa vida serviu à moça como o ar quente serve aos pássaros que planam de asas abertas ganhando altura sem nenhum esforço. Dulcinha tinha essa facilidade de transformar dor em escada. Semelhante efeito poderia ter acontecido depois do infarto fulminante de seu Mauro. Elevaria alguns metros e veria muito mais coisas, embora todos saibamos que lá do alto o campo visual aumenta, mas o único barulho que chega cá de baixo aos ouvidos de quem vê as nuvens de pertinho é latido de cachorro nervoso. Isso, todavia, não importa pois, Dulcinha recebeu o anel e algumas informações de seu Inácio no dia em que enterrou seu pai forçando-lhe uma aterrissagem  que inconsciente ou talvez até conscientemente evitara.

Ao receber a aliança, a recém formada em licenciatura colocou-a no bolso. Não ousou experimentá-la porque não conseguiu vê-la como um delicado metal que serve para adorno. Afinal, lembremos o que disse seu Inácio no momento em que entregou o ouro: dona Roberta havia engolido o anel antes de morrer. Na verdade, ele não havia dito isso, mas foi o que quis dizer quando mencionou costelas, estômago e olhou bem dentro dos olhos de Dulcinha.

A moça que poderia ter retornado para casa sentindo apesar da saudade uma sensação de estar vivendo corretamente depois de colocar seus pais juntos debaixo da terra (como é dado a maioria das raízes), desorientou-se ao analisar o que carregava no bolso. De fato, era uma aliança de casamento, mas na parte interna lia-se Murillo 30-4-1901, a data do matrimônio de seus bisavós. Bisa Rosalinda havia se casado com Biso Murillo, fizeram bodas de diamante, tiveram uma dúzia de filhos e mais de cinquenta netos. Vovó Acélia era uma das oito filhas desse casal e como a maioria de seus irmãos casou-se e tivera quatro filhos: Rafaela, Rubens, Rita e a falecida Roberta. Por que de oito filhas da Bisa Rosa a vovó Acélia foi escolhida para ficar com uma aliança usada por mais de sessenta anos pela bisa e ainda, por que das três filhas da vovó o anel estava com a mamãe? Perguntou-se Dulcinha sentada no sofá enquanto segurava somente com as pontas do indicador e do polegar o que seu Inácio lhe entregou com a palma da mão aberta como se segurasse uma bandeja.

Puxa vida, o que se passara na cabeça de sua mãe pouco antes de ser vista como um alvo? Foi sua mãe um alvo? Dona Roberta correra para salvar-se ou para salvar o anel? Ao engoli-lo, pensou Dona Roberta em Dulcinha?  Pensamos quando engolimos um anel? Que grau de importância pode ter um objeto que diante do risco de se perder a vida lembramos de protegê-lo? Dona Roberta quis protegê-lo ou proteger sua história? Há histórias sem narrativas? Deveria Dulcinha entregá-lo a sua avó Acélia dando-lhe a oportunidade de repassá-lo à outras filhas? Deveria contar-lhe em que circunstâncias o anel foi encontrado? Não judiaria, assim, mais ainda de sua avó que mesmo depois de sete anos após ter enterrado sua filha Roberta sofre como somente sofrem aquelas que veem uma vida que ajudou a construir encerrada antes do tempo? Conversaria com as tias? Estaria violando algum segredo? Ou se silenciaria? Faria sentido guardá-lo?  Usá-lo nem pensar. Ou usaria? Haveria sentido aquele anel em seu dedo? Haveria sentido aquele anel em uma gaveta? Faria sentido aquele anel no caixão?

E a moça que não era dada a reflexões, como já dito, desenfreou-se a meditar  por horas naquele sofá. O que é fazer as coisas “à minha maneira”? Somos livres para mudar? Somos eternos? O que dá valor à uma vida? Um incêndio pode ser belo? É difícil se comunicar? Para quê revelar a nossa intimidade? O que nos conduz à verdade? Ser livre é fazer o que queremos? A verdade é um ponto de vista? Quando é que a vida tem sentido? Um daltônico sabe o que é vermelho? É legítimo mesmo sem provas crermos em um Deus? O que é ser responsável? Somos racionais? Os instintos podem estar certos ou errados? Por que é que nos preocupamos com o passado? Quem somos agora determina quem vamos ser amanhã? Pode o sentido da vida parecer sem sentido? São os deuses astronautas?  Podemos conhecer algo inconscientemente? Não provar a culpa prova a inocência? Onde é que as palavras se encontram com as coisas? Conhecemos melhor através dos sentidos ou através das ideias? Escolhemos o nosso futuro? A morte é o fim? Existimos depois de morrer? A morte é compatível com o sentido da vida?

E as perguntas não paravam, muito pelo contrário, aumentavam exponencialmente e as respostas não chegavam e Dulcinha se desesperava sem chão, sem céu, sem paz. Passou a viver como quem vive no inferno. Estava a filha de Roberta sofrendo de depressão? Não, a neta de Acélia sofria de filosofia. A aliança a fez ver um mundo distinto daquele que é constituído apenas de objetos diferentes, de diversos tamanhos e cores. A bisneta de Rosalinda passou a viver num universo não mais organizado tridimensionalmente onde o tempo segue uma marcha inexorável numa única direção e onde as pessoas sabem o que fazer com um anel. Dulcinha, vejam vocês, às vezes andava com ele dentro de uma caixa. Nunca o colocou no dedo. Pensou em jogá-lo no mar. Recusou-se a guardá-lo em uma gaveta. Temeu devolvê-lo à avó. Repugnou dá-lo a uma tia. Resistiu engoli-lo. Admirou-o por horas. Desejou nunca tê-lo visto. Assistiu televisão com ele ao seu lado. Cantou para ele. Colocou-o debaixo do travesseiro antes de dormir na esperança de quando acordar não vê-lo mais ali. Segurou-o entre as palmas de suas mãos e rezou. Riu para ele. Pobrezinha. Usou-o como marcador de livro. Pendurou-o no chaveiro. Teve medo de perdê-lo.

Enfim, a vida de Dulcinha não teve mais um rumo certo. As dúvidas do que fazer com a aliança usada pela bisa Rosa, pela Vó Acélia e pela mãe perseguiram a moça até onde conseguimos acompanhar essa história. A professora de matemática não via mais lógica em nada. Ensinava equações do segundo grau olhando de lado para o próprio quadro em que escrevia, mudava sempre os móveis de lugar, não usou mais relógio de pulso, deixou de ser católica, tinha problemas para atravessar as ruas, virou vegetariana, parou de ajudar os pobres, não teve dificuldades nos relacionamentos e pintou as paredes dos quartos de azul. Nunca mais Dulcinha leu Clarice Lispector.


Mas se querem saber a verdade... a verdade é que dona Rosalinda, a oficial proprietária do anel e bisavó da pobre Dulcinha, não deu anel para filha nenhuma. Já não usava aliança há muito tempo antes de falecer porque a incomodava. Também pudera, dona Rosalinda engordou horrores depois da menopausa. Uma das filhas de dona Rosa, a atual avó de Dulcinha, viu o anel um dia em cima da cabeceira jogado e o experimentou. Esqueceu-se de tirar e acabou ficando com ele no dedo. Dona Rosa bateu as botas e nenhum dos filhos fez questão de saber da aliança. Roberta, a que levou um tiro, era chegada a adereços  e observou o bonito aro dourado na mão da mãe. Pediu para ver. Me dá? Fica. Disse Acélia para Roberta enquanto fumava um cigarro e lia uma revista. Pelo visto nem se dava mais conta que o elo grafado existia. Roberta, por sua vez, vivia trocando de anéis como quem troca de roupa, mania dessa mulherada de sair toda combinando. E, para finalizar, o maluco do seu Inácio que trabalha no cemitério do Caju até hoje tem essa estranha  mania de ficar dizendo pros outros que tudo o que vê no caixão foi o defunto que comeu.


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