terça-feira, 27 de setembro de 2011

Retrovisor


No meio da redação de uma tese em filosofia cometi um deslize imperdoável. Guiada somente pela intuição acreditei que para entender o que os filósofos do século XVIII discutiram era necessário assimilar o conhecimento que eles possuíam e, portanto, comecei estudar os filósofos do século XVII que por sua vez discutiram várias ideias de seus antepassados e para entendê-los, achei eu que precisaria ter acesso aos livros escritos no século XVI que por sua vez... durante esse movimento desenfreado de marcha-ré, a introdução da minha tese estava parecendo o gênesis. No princípio Deus criou os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo. E disse Deus: Haja luz; e houve luz... Eu estava descontrolada. Por telefone meu orientador me tirou desse pesadelo assim que soube, por email, que eu estava disposta a só andar para frente quando chegasse à Adão e Eva.

“Se eu quisesse te conhecer melhor e pedisse uma descrição minuciosa a seu respeito para os seus pais, eu poderia estar seguro de que te conheceria com o que ouvisse de seu pai e principalmente de sua mãe? Se eu perguntasse para todos os seus ancestrais sobre você, conseguiria eu abarcar a sua personalidade? Então, me poupe. Nos vemos na semana que vem. Até lá não leia mais nada para não se complicar mais.”

Teoricamente eu já sei de muita coisa. Inclusive eu sei que depois da História formalmente ter se estruturado como um campo de conhecimento, muitos dos historiadores se preocuparam com a ordenação cronológica dos fatos, que era uma das formas possíveis de organizar todos os documentos, e que acabou sendo a dominante, pois quase sempre permitia a estruturação causal explicativa. Contudo, as transformações econômicas, políticas e culturais do século passado romperam com as estruturações históricas uniformes, hierarquizadas e muitas vezes até preconceituosas. E então, a História passou a ser diferenciada: Qual é o passado que cada grupo social valoriza? Dessa forma, ele (o passado) deixou de ser único, unívoco e, principalmente, explicativo mesmo para uma mesma sociedade. Ou seja, existem n maneiras de se contar um fato e para cada efeito cabe ao historiador escolher a causa. Segue-se disso uma grande conclusão: quem olhar para trás na esperança de entender o presente pode estar cometendo um grande equívoco.

O problema é que isso tudo é muito contra-intuitivo e eu esqueço toda hora esse blá blá blá. Ainda mais agora depois de ter percebido que mesmo seguindo por caminhos muito diferentes eu e meu primo Marcos temos muito em comum e isso é certamente pelo fato de nossas mães serem irmãs. Óbvio. Mais ainda: andei me impressionando de verdade ao ver como papai fica bem nas fotos que ele tem mandado lá do Japão.
-Alô, prima! Vou ao Rio ver o Elton John e vou aproveitar para ver vocês! – Deveria não ser nessa ordem, primeiro eu depois o Elton John, mas tudo bem. Dei gritos de alegria assim que desliguei o telefone.

Marquinhos casou-se ao som de Skyline Pigeon, é filho de tia Neusa, irmã de mamãe e nos víamos muito quando éramos crianças e nossos avós, vivos. Quase todo final de semana, meus pais  carregavam eu e meus irmãos sem cinto de segurança até Itajubá, terra natal de mamãe, para que dona Ruth não sentisse tantas saudades nessa vida. Andei muito de bibicleta com meu primo! Jogamos war por várias tardes, conhecemos algumas cachoeiras na estrada que liga Itajubá à Maria da fé, brincamos por várias roças das tias e primas de nossas mães, ouvimos várias vezes vovô tocar violão ao lado do tio Sebastião, vimos vovó fazer manteiga e iogurte e conversamos muito com nosso tio Levi. Por outro lado, papai trazia também sem cinto de segurança e na parte de trás da Belina vários primos para conhecer o Rio. Marquinhos vomitava em cima da gente em plena Serra da Mantiqueira. Ele passou muitas férias na casa dos meus pais que não mudam de endereço há quarenta anos. Papai levava a gente ao Cristo, ao pão de açúcar e à praia e à praia e à praia que era nosso passeio preferido. Marquinhos conheceu e brincou muito com a Laica, a minha collie e eu somente conheci o Astro, o pastor-alemão dele que era muito brabo e quase mordeu mamãe um dia.

E aí, o telefone tocou e era dois mil e onze.

Eu e Marcos passamos uma semana juntos depois de mais de duas décadas sem nem ao menos trocar uma palavra. Vimos juntos a primavera chegar! Tudo culpa do Elton John. Assim que  Marquinhos soube que ele viria para o Rock in Rio resolveu tirar uma semaninha de férias e se despencou do cerrado com toda a sua família para cá. Conheci, então, novos priminhos, ganhei uma prima maravilhosa de quebra e passeamos pelo Rio de Janeiro até onde a disposição permitiu. Conversei um tantão de coisas assim com o primo e fiquei extremamente impressionada com tamanha sintonia! Papai só não nos acompanhou dessa vez porque está a um diâmetro terrestre de distância mandando fotos super interessantes e incrivelmente belas ao lado dos amigos de faculdade e de tias que jamais conhecerei. Papai lá na terra do Sol Nascente também tem se emocionado um bocado.

E aí tudo se fundiu na minha cabeça. Meu Orientador, me perdoe, eu pequei: Passei a dirigir olhando somente para o retrovisor acreditando que o que visse através dele bastaria para andar de forma mais segura para frente. Tive a nítida impressão de que o presente é o que é por conter várias partículas do passado. A fulgente noção linear do Tempo, que se percebe numa continuidade única de Passado-Presente-Futuro, apossou-se da minha cabeça. E, de repente, era como se eu estivesse dirigindo em direção a algo. Como se estivesse guiada por alguma coisa. E eu quis uma explicação clara sobre mim mesma e uma tese completa e linda com dois milhões de folhas! Fiquei impressionada com aquele tufão seguido de terremoto no Japão no dia em que papai estava chegando. Meu pai não é fácil e acho que o retorno dele à minha pátria-avó gerou uma certa instabilidade por aqueles solos. Fly away, skyline pigeon, fly! Viva Elton John!!!! Papai causou um tufão!

“-Se eu quisesse te conhecer melhor e blá blá blá...”

Então, mais uma vez na minha vida de repente, não mais que de repente, fez-se de sozinho o que se fez contente, do amigo próximo o distante e da tese uma aventura estressante.

É.

Meu orientador tem razão.

Pensando bem... Papai fica bem em todas as fotos e se fosse ele que tivesse causado aquele terremoto e o tufão, aqui no Brasil teríamos sentido alguma tremedeira no chão quando ele estava desse lado.  E depois também, eu e Helena, a esposa do Marquinhos, descobrimos várias afinidades e ela nem é filha de alguém que minha mãe conheça... 

Meu orientador tem razão, mas está no Chile.

Marquinhos já foi embora, meu pai a essa hora  deve estar dormindo em Tóquio e eu? Eu acho que não tenho jeito não. A única forma que vejo de conseguir  redigir alguma  coisa dessa tese é começando pelo capítulo 273. Hoje, de novo, levei um susto danado com a harmonia mais que perfeita da imagem do rosto de papai imerso nas paisagens nipônicas  e ri sozinha lembrando da priminha Letícia. Ô menina parecida com a tia Neusa!