quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Em luta pela dignidade humana!


Acordei diferente. Hoje será a passeata contra a redistribuição dos royalties da exploração do petróleo e eu decidi na segunda-feira que não posso morrer sem participar de uma passeata. Sinto muita inveja daqueles que já desfilaram com a cara pintada ou apenas gritando algo de cara limpa mesmo no meio de uma multidão. Muito lindo as pessoas andando com os braços direitos levantados e punhos fechados que se movimentam no ritmo de brados retumbantes, segurando faixas, cantando Geraldo Vandré...nossa, acho isso o máximo e sinto até vergonha de nunca ter feito nada parecido. Mas resolvi que seja lá o que forem esses royalties, eles são é nossos. O Rio é nosso! O petróleo é nosso! Abaixo a injustiça!!! Se o impacto é nosso, os royalties também! Vou arrebentar nessa passeata. Estou até me vendo fazendo parte da história. Maneiro.

Senti, porém, pela manhã um desconforto semelhante ao que experimentei na minha abençoada infância quando comungava sem antes me confessar. Precisava resolver uns probleminhas para ir com a consciência tranquila lutar por esse Rio maravilhoso. Ter me lembrado disso hoje me deixou até feliz, confesso. Moro, no entanto, no subúrbio carioca, na parte calma de Madureira. Tenho umas multas para pagar e o Itaú mais perto do meu domicílio fica em Cascadura. O panorama não era dos mais animadores, ainda mais sabendo que não há mais estacionamento em lugar algum do planeta quanto mais em Cascadura. Restavam-me duas opções: ir de ônibus ou ir a pé. Julguei que uma caminhada me faria bem. Precisava me preparar fisicamente para a tarde.

Saí de casa às dez. Entupi-me de protetor solar e lá fui eu com a honra daqueles que não se envergonham dos seus erros e os reconhece sem orgulho, é claro, perante seja lá quem for. Com uma multa vencida por andar na faixa de ônibus em plena avenida Brasil (sem querer), com várias taxas de incêndio atrasadas desde 2009 e mais tantos outros pecados que couberam entre as folhas de um livro de Rubem Braga, caminhei com meu nariz em pé e protegido do Sol. Atravessei aquele viaduto todinho pensando em como o Rio precisa de mim e questionei como esse pobre subúrbio vai sobreviver sem esses Royalties... A falta de beleza dessas bandas nunca me fez sentir tão bem disposta.

De casa até o Itaú, ‘o banco do Rio’, eu vi tanta coisa... Eu vi uma mulher procurando o isqueiro na bolsa com o cigarro pendurado na boca enquanto esperava o trem na estação, eu vi um homem sentado todo agasalhado debaixo do sol e bem no vão central do viaduto, eu vi uma mulata bonita de cabelos longos e de salto alto sorrindo quando os homens da construção fizeram fiu fiu. Vi três pessoas vestidas de iogurte, puxando um carrinho-iogurte vendendo iogurte no saco a uma bagatela de centavos. Eu vi um carrinho de mão cheio de aipim-manteiga na calçada, vi uma mulher vestida de branco que media a pressão por um real. Vi o bicheiro. Vi um açougue cheio de carne pendurada, um coelho pelo avesso também suspenso, e vários frangos assando dentro desse mesmo estabelecimento. Vi uma loja fedorenta de artigos de macumba. Vi a imagem do capeta. Vi uma churrasqueira feita de um tonel por duzentos e noventa e nove reais. Vi um homem com um saco preto enorme de lixo cheio de bucha dentro. (Cinco buchas dois real). Vi o Natal no Amigão. Vi um senhor que conserta panela de pressão sentado consertando uma pipoqueira. Vi duas senhoras com óculos conferindo o troco na porta de uma farmácia. Vi várias pessoas acima do peso comendo pastel e bebendo caldo de cana. Vi dois chineses. Vi vários senhores na praça jogando cartas e conversa fora. Vi crianças também na praça matando aula e mexendo nos celulares. Também na praça, vi um menino no balanço, descalço e com um vidro de cola em uma das mãos. Vi um punhado de coisa nessa praça. Vi umas roupas secando no banco (da praça). Procurei o dono daqueles parcos trajes. Não o vi. Vi uma mulher que fazia artesanato nos panos de prato. Bordava o nosso nome em vinte minutos, um troço de doido. Vi muitos pombos e nenhum passarinho.

Enfim, vi o Itaú.

Até aí, eu estava super animada para lutar contra a injustiça e em defesa do Rio. Mas...

Entrei.

Fiquei quarenta minutos na fila, li seis crônicas do Rubem Braga e quando cheguei no caixa, a moça de unhas decoradas me falou que eu teria que tirar uma segunda via da multa vencida no terminal eletrônico lá embaixo. Fui lá embaixo. Toquei a tela várias vezes e consegui. Apertei sim quando a máquina perguntou se eu queria impresso. Tirei o papel. Subi. Esperei mais um tanto. Quanto ao outro documento, eu teria que conversar com a gerência lá embaixo, disse a moça de unhas decoradas e de cabelos alisados. Fui lá embaixo. Dirigi-me até o local onde cinco mulheres bem vestidas trabalhavam em mesas bem grandes. Li mais cinco crônicas. Desisti de ler. Fui mandar mensagens no celular. O guarda brigou comigo. Não pedi desculpas e ainda passei a frente de duas velhinhas que estavam na fila conversando e nem perceberam que foram chamadas. Perdi a noção. Peguei a porcaria de um número com a gerente que estava com uma bolsa certamente falsificada da Louis Vuitton na mesa. Subi. Aguardei mais um tanto assim de uma crônica e meia. A moça de unhas decoradas, de cabelos alisados e de sobrancelhas ultra-finas disse agora tá tudo certo. Olhei bem dentro daquelas lentes de contato coloridas. Senti necessidade de urrar. Tive vontade de jogar um balde d´água naqueles cabelos.  E eu também queria chutar as mesas e jogar todas as cadeiras longe. Precisa falar um tantão de palavrão aos berros. Visualizei os estudantes da USP me ajudando a quebrar tudo aquilo. Tentei sair de lá correndo e fiquei presa na porta giratória na saída! Tive que mostrar as chaves, o celular interdito e aaaaah como eu queria mostrar uma arma.

Fiz sinal pro ônibus e ele passou direto. Voltei andando, ou melhor, voltei correndo. Era mais ou menos como se tivesse apertado a tecla 'voltar' de um controle de DVD na velocidade 4x. Saco de bucha, homem-iogurte, bonecão do capeta, bicheiro, mulher de branco, mendigo, chinês, Natal no Amigão,... aquele pesadelo todo de novo.  Nem  o pedaço de madeira preso no asfalto com pregos para consertar um vazamento fez-me mudar o meu novo foco que está agora no meu umbigo. Precisava me isolar o mais rápido possível e evitar todo e qualquer contato social.

Agora? A minha luta agora será para resgatar a minha dignidade!  E isso não se faz de uma hora para a outra.

Paciência. Não será hoje que farei parte da história. 

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7 comentários:

  1. Via facebook recebi esse carinho:

    Elika, li o seu texto! Se serve de consolo: Vc já faz parte da história. Pelo menos, foi graças a vc, que eu entendi algo de física, entendi que o professor bom faz qq matéria parecer interessante, não zerei a prova de física do vestibular, passei para uma universidade pública e... quis ser professora! Com certeza, outros alunos seus vão concordar comigo! Vc fazer o seu trabalho bem feito ajuda muito mais na história deste país do que ficar ao lado do Sergio Cabral na passeata...

    Veronica

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  2. Lá lá láááá. Fiquei toda boba e sem-graça com o seu comentário, Veronica! Muito gradecida! :_ )

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  3. Super legal seu texto. Sim vc faz parte da história de muuuiiita gente. Bjs!! Tata

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  4. Legal, Ta!!!

    Mas os jornais que me aguardem!

    =)

    É nóis na roça!

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  5. Nossa, seu relato me lembrou "Um dia de fúria". Lembra do "Denuncia-se a ti mesmo e verás quem és"?
    Mas, mudando o rumo da prosa, o nosso subúrbio é único mesmo!!!
    E a atendente? Costumo dizer que pra saber se é de verdade, tem que jogar água!KKKKKKK!!!!!

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  6. Oi Élika! Esse anônimo aí de cima sou eu, Luciana do Maza, é que pela conta do Google não foi de novo...bjs

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  7. =D

    É, minha filha, só quem vive nessa terra é que sabe como isso tudo pode ser beeem divertido.

    Beijo enorme , Lú.

    Em breve, é nóis no Lavradio!!!

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